O encontro de
hoje é resultado de uma articulação que vem acontecendo há pouco mais de um
ano, uma articulação de trabalhadores da atenção psicossocial que constroem
seus cotidianos a partir de dispositivos artísticos, uma Rede de Fazedores de
Arte na Atenção Psicossocial, um espaço de troca e ação coletiva dos muitos
profissionais que atuam na interlocução entre produção de saúde e produção
estética.
É
histórica a transdiscilplinaridade entre arte e saúde. No Brasil, arte, loucura
e saúde mental constroem linhas de atravessamentos desde o século XIX, pautadas
em experiências contra-hegemonicas de embate a psiquiatria tradicional e sua
lógica. Hoje, a política nacional preve como parte integrante das equipes dos
CAPS os oficineiros, que nada mais são do que a afirmação dessa interlocução.É
importante frisar este aspecto: os oficineiros não inauguram nada, são uma
consequencia desse processo de construções estéticas realizado, antes de tudo,
por diversos profissionais – psicologos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais,
educadores físicos, assistentes sociais.
Assim, as
práticas artísticas colaboram com a transformação do cotidiano dos serviços de saúde,
figurandocomo um potente dispositivo para as construções e descontruções
necessárias do cuidado em liberdade, uma importante ferramenta para compormos
uma produção de cuidado longe de principios normativos, para todos os
envolvidos em sua construção,usuários, cuidadores, gestores, trabalhadores.
São
muitas as pretensões da Reforma Psiquiatríca, não basta fecharmos os manicomios
e criarmos uma Rede de Atenção Psicossocial – isso é só o começo. Faz-se
necessário avançar, e muito, na forma como se constitui o tecido sociocultural
dos modos de vida não-hegemonicos, ou seja, a forma como a sociedade compreende
as muitas existências fora da norma produtiva capitalista – o louco, o drogado,
o deficiente, o velho, a criança. E é justamente neste campo que as iniciativas
artísticas dentro dos modos de produção de cuidado podem atuar; a arte vem
sendo utilizada para desmistificar e transformar a concepção que a sociedade
criou desses modos de vida não hegemonicos desde os primórdios da psiquiatria.
O que está em
questãonão é mudar o modelo de assistencia, mas sim recolocar socialmente alguns
temas, redefinir a construção cultural da loucura, das drogas, da miséria,
combatendo toda e qualquer ação que responda a uma lógica manicomial. A
produção artística, dentro desta perspectiva, é ponto fundamental, pois atua
diretamente no campo simbólico, possibilitando outras construções culturais no
tecido social.
No entanto,
vivemos tempos sombrios. Forças reacionárias se articulam e, dia-a-dia, ampliam
as práticas manicomiais dentro da produção de cuidado psicossocial.
Acompanhamos cotidianamente a transformação dos CAPS em centros ambulatoriais,
a internação compulsório de dependentes químicos, um aumento das práticas
medicalocentricas nos serviços de saúde, programas públicos para financiamento
de clínicas privadas de internação.
Entre as
muitas problemáticas que cercam nosso trabalho, existe uma que diz respeito a
este encontro e que precisa ser enfrentada: a captura da experiência estética
dentro de uma lógica de diagnóstico clínico. Em um campo de atuação não
emancipado, onde as práticas artísticas ocupam um lugar auxiliar na atuação dos
serviços de saúde, a experiência estética se apresenta como uma forma refinida
de recolher indícios patológicos, reduzindo a arte ao paradigma da ciência.A
produção artística nunca é um mero reflexo de sintomas. Em um contexto deste
tipo, a arte reforça ideologicamente os alicerceres da psiquiatria, servindo
como um dos instrumentos para normatização dos corpos e eliminação dos
impróprios, dos modos de existência que não cabem dentro do corpo social
hegemonico.
Mario Pedrosa,
importante crítico de arte e figura histórica fundamental na construção desse
encontro entre arte e saúde, afirmava que a experiência estética é um
“exercício experimental da liberdade”. Talvez tenhamos aí um primeiro norte
para pensarmos essa interlocução. É preciso que se afirme a autonomia das
experiências estéticas para que estas mantenham seu caráter emancipado, não se
institucionalizem e percam seu caráter disruptivo, questionador e inventivo.
Quando falamos
dos horizontes da reabilitação psicossocial falamos da inserção no mundo da
coletividade, da invenção do cotidiano da cidade. Transformar a cultura da
loucura, das drogas, dos excluídos, significa atacar os regimes de verdade
hegemônicos que pautam socialmente esses temas. Isso é tarefa nossa. Esse é o
grande trunfo das investidas estéticas dentro do trabalho de composição
multidisciplinar nos serviços de saúde – a construção de um tecido cultural
intenso, feito a partir do empoderamento da existência singular dos usuários
que a produzem; a cultura feita em ato. Cultura antimanicomial.
As modalidades
de resistência vital proliferam de maneiras mais inusitadas. E isso precisa ser
afirmado. Nosso é um tempo do abandono dos espaços públicos de convívio, do
empobrecimentos afetivo das cidades. Um projeto perverso anima a produção
contemporânea do espaço, que torna os lugares públicos lugares de passagem,
obstáculos a serem transpostos entre uma ilha de consumo e outra.
Tudo isso para
pensarmos que, se trabalhamos em nossos serviços de atenção psicossocial
tentando construir um cotidiano dos usuários com a cidade, precisamos
estabelecer uma produção de cidade, inventar espaços no cotidiano da metrópole.
É um processo social complexo este da desinstitucionalização; o território,
mais do que nunca, é estratégia fundamental nessa construção, é nele que se dá
a experiencia do sujeito em relação com o tecido social.
Neste trabalho
de produção de espaço, a cultura é um importante recurso pois afirma, em forma
de ação realizada no território, a expressão da diversidade. Podemos pensar que
a produção artística na geográfia da cidade não marca um retorno de modos de
vida não-hegemonicos ao espaço público, mas antes, transformam a cidade e seus
dispositivos em ferramentas de investigação para esses modos de existência se
afirmarem enquanto acontecimento,uma ação potente para que se produzam
territórios de emancipação para todos os envolvidos, cuidadores, usuários,
trabalhadores, artistas.
Podemos
abordar a experiência estética como um recurso para borrarmos as fronteiras dos
especialismos e possibilitarmos a atuação no território e a construção de uma
cultura não-hegemonica de existência. Afirmar que esse modos de vida devem ser
considerados como uma forma de saber com a qual toda a sociedade tem muito a aprender,
fora de uma lógica dicotomica de ‘dentro da norma/fora da norma’.
Logo, dentro
dos muitos modos de interlocução entre saúde e arte, fica patente a necessidade
de bolarmos estratégias que blindem nosso trabalho cotidiano das muitas formas
de captura operadas pelos mecanismos de poder, através da lógica normativa do
capital, capilarizado de maneira profunda em todas as instâncias das nossas
vidas. Não podemos cair no engodo de produzir obras estéticas no interior dos
nossos serviços visando apenas um produto, um objeto artístico capaz de agregar
valor economico dentro da lógica da grande indústria da arte. Não bastaum
investimento de desejo dos trabalhadores para que os usuários do serviço se
tornem sujeitos economicante produtivos através de seus produtos
artísticos.Nunca devemos valorizar mais o produto do que o processo. É nele, no
processo, nas muitas formas de produzir arte a partir de agenciamentos
singulares, que se compõe as possibilidades de revoluções micropolíticas no
coração dos equipamentos de saúde.Construír territórios a partir das produções
estéticas desejantes que cotidianamente realizamos em nossos equipamentos.
Nosso trabalho é eminentemente político. Estamos
constituindo o que é a saúde pública do Brasil, um compromisso sério. Somos
agenciadores de modos de existência que estão em um estado de insuportabilidade
na vida social; somente mudanças operadas nesse campo produzirão efeitos
contundentes no cotidiano dos usuários. A reconquista do cotidiano. O mundo
humano depende da invenção que se dá no cotidiano da experiência. Essa é a ideia
de clínica ampliada como a entendemos, um lugar de produção de vida a partir do
desejo e da singularidade, um lugar de agenciamentos coletivos e afirmação de
estilísticas de existência. A produção de saúde compreendida em seu amplo
sentido psicossocial, seu sentido político.
Essa disposição militante precisa ser destacada.
Nos organizamos enquanto trabalhadores de base, usamos nossas ferramentas e
articulamos o encontro de hoje. Nos juntamos porque sabemos que juntos podemos
construir mais. E que estamos articulados com princípios em comum, e que isso
nos torna mais fortes, sobretudo politicamente. Estamos em um momento de
levante. Nossa Rede dos Fazedores de Arte participa dessa ampla construção, feita
na base do militantismo. Não à toa as ruas recentemente foram tomadas por todo
o Brasil. Existe a construção de uma cultura de militância em curso já há
muitos anos – a Luta Antimanicomial foi uma de suas grandes alfabetizadoras. Os
serviços que atuamos são frutos dessa cultura.
Temos de nos articular, assumir nossa
responsabilidade dentro desse processo, nos colocarmos como agentes de
transformação dos nossos serviços. Operar a política de produção de saúde e
subjetividade que julgamos consequente, articuladas com nossas práticas
artísticas. Tudo junto e misturado. Uma máquina desejante
ética-estética-politica, produzir cidade. Somos loucos, e não somos poucos.
Antes de mais nada, tudo.
Bom encontro a todos!
Rafael Presto
Oficineiro do CAPS Infatil Sé e
Arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na
Atenção Psicossocial