sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

eu - preta, pobre e crackeira

eu
preta, pobre e crackeira

Hoje estava na rua Frederico Abranches, zona central de SP, no Complexo Cracolândia. Caminhava sozinha em direção ao metrô Pedro II. Peguei a passarela. No meio dela dou de cara com um amontoado de pessoas que rodeavam outras três. Dois homens imobilizavam outro que estava estendido no chão.

- O que aconteceu?

- O cara roubou a carteira dele!

O “cara” era um homem negro, alto, vestido de um jeans. Naquele momento o “cara” era um preto, pobre, crackeiro que tinha roubado uma carteira e tinha agora o rosto esfolado no chão.
“Ele” segurava os braços do “cara” e o pressionava com as pernas contra o chão, com a colaboração de um outro justiceiro qualquer.

- Moço, você pegou sua carteira?

- Eu tô com a carteira!

- Então larga o “cara”!

Naquele momento o “cara” sentia na pele toda revolta e miséria política-afetiva que o corpo multidão pode portar.
Uma garota se aproximou com dedo em riste na minha cara.

- Você é uma escrota!

Aí começaram os instantes dos mais oprimidos que já vivi – porque naquele instante eu já era outra. A pele escureceu, a grana da sobrevivência escapou e o crack me invadiu. Bem assim. Nunca, em nenhuma situação, em nenhum estudo, movimento social ou poéticas homônimas senti isso.

Ela sentia ódio. Me olhou no olho, como se fosse a última coisa que faria na Terra. E repetia.

-Você é uma escrota!

Ela cada vez mais perto.
Ao mesmo tempo, um homem branco limpinho, de uns cinquenta anos, aproximou-se mais e gritou:

-Você é cúmplice desse cara!

E outro qualquer – nisso meus olhos já quase não enxergavam – aproximou-se também.
Ele tá contendo o cara pra chamar a polícia! – esclareceu mais outro justiceiro.

Consegui que a roda se virasse pra mim. Quase todos ali me rodeavam. E aí o vômito chegou à garganta, engoli uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já estava ali, em cada um deles.

Eu era a preta, pobre, crackeira. Sem cristianismos. Senti o que jamais senti na pele. Nenhuma bomba de gás lacrimogêneo me fez sentir assim. Bem assim. Eles estavam prontos pra rasgar minha cara no concreto, como faziam com o preto, pobre, crackeiro que bateu carteira. Eu roubava a dignidade que eles sentiam em reprimir. Bem assim. A força de multidão que os impulsionava, a força da alienação do efeito massa que pode acontecer quando um monte de gente se junta seja para o que for.  Pelo menos seis pessoas estavam a menos de um palmo de mim.E eu, preta-pobre-crackeira-escrota senti a violência da polícia.

Eu não apanhei. Porque me calei, deixei o “cara” já de pé, mas ainda encurralado, virei as costas e segui. Aos soluços e engasgada com o vômito que não saiu. Mais ou menos cinquenta minutos  - na intensidade felina dos mais ou menos cinquenta anos daquele senhor - de choro com soluço no metrô, na rua, no ônibus. Do afeto agonizante e humilhado não privei nenhum passante.

Afinal, a violência é de quem?

O drama do protagonista que é sempre o primeiro a agonizar a vida que se vive.

Hoje eu não subverti nada, não construí nada, pouco me manifestei. Fui gente covarde com medo de apanhar. Fui gente que quer viver e não se orgulha em sangrar. Fui gente cansada, rasgada no peito.

Nesse dia que fui branca e fui preta, que fui classe média-intelectual e fui crackeira, eu só queria, como quero todos os dias, que toda a gente pudesse ser gente nessa cidade.

Caros repressores,

Caros ressentidos,

Caras pessoas que reproduzem a lógica de massacre,

Diante de toda bomba e de todo dedo em riste,

Diante de todo medo que senti,

Posso dizer agora, neste mesmo dia de hoje, que vossa força reativa encarnou neste corpo que vos fala a máxima potência da indignação. Senti o que jamais vivi na minha vã filosofia militante. Senti no corpo o ódio da farda que vocês vestiram. Vocês ameaçavam com humilhação e estupidez inúteis a vida daquele homem. Vocês ameaçaram a minha vida.

Luto com tudo o que posso contra vossas fardas.

Luto contra as minhas fardas.

E se hoje pelo meio do dia eu não falei

Pela noite escrevo e publico.

Quando a gente se expõe ao acontecimento ele acontece.

Também tenho minhas armas.

(quais modos de existência estamos produzindo nessa cidade?)

Toda força aos que lutam!


Priscila Tamis

                                                                                                                                                                                                                                           

Por Uma Clínica Ampliada da Arte



O encontro de hoje é resultado de uma articulação que vem acontecendo há pouco mais de um ano, uma articulação de trabalhadores da atenção psicossocial que constroem seus cotidianos a partir de dispositivos artísticos, uma Rede de Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, um espaço de troca e ação coletiva dos muitos profissionais que atuam na interlocução entre produção de saúde e produção estética.
                
         É histórica a transdiscilplinaridade entre arte e saúde. No Brasil, arte, loucura e saúde mental constroem linhas de atravessamentos desde o século XIX, pautadas em experiências contra-hegemonicas de embate a psiquiatria tradicional e sua lógica. Hoje, a política nacional preve como parte integrante das equipes dos CAPS os oficineiros, que nada mais são do que a afirmação dessa interlocução.É importante frisar este aspecto: os oficineiros não inauguram nada, são uma consequencia desse processo de construções estéticas realizado, antes de tudo, por diversos profissionais – psicologos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, assistentes sociais.

Assim, as práticas artísticas colaboram com a transformação do cotidiano dos serviços de saúde, figurandocomo um potente dispositivo para as construções e descontruções necessárias do cuidado em liberdade, uma importante ferramenta para compormos uma produção de cuidado longe de principios normativos, para todos os envolvidos em sua construção,usuários, cuidadores, gestores, trabalhadores.
                
        São muitas as pretensões da Reforma Psiquiatríca, não basta fecharmos os manicomios e criarmos uma Rede de Atenção Psicossocial – isso é só o começo. Faz-se necessário avançar, e muito, na forma como se constitui o tecido sociocultural dos modos de vida não-hegemonicos, ou seja, a forma como a sociedade compreende as muitas existências fora da norma produtiva capitalista – o louco, o drogado, o deficiente, o velho, a criança. E é justamente neste campo que as iniciativas artísticas dentro dos modos de produção de cuidado podem atuar; a arte vem sendo utilizada para desmistificar e transformar a concepção que a sociedade criou desses modos de vida não hegemonicos desde os primórdios da psiquiatria.

O que está em questãonão é mudar o modelo de assistencia, mas sim recolocar socialmente alguns temas, redefinir a construção cultural da loucura, das drogas, da miséria, combatendo toda e qualquer ação que responda a uma lógica manicomial. A produção artística, dentro desta perspectiva, é ponto fundamental, pois atua diretamente no campo simbólico, possibilitando outras construções culturais no tecido social.
No entanto, vivemos tempos sombrios. Forças reacionárias se articulam e, dia-a-dia, ampliam as práticas manicomiais dentro da produção de cuidado psicossocial. Acompanhamos cotidianamente a transformação dos CAPS em centros ambulatoriais, a internação compulsório de dependentes químicos, um aumento das práticas medicalocentricas nos serviços de saúde, programas públicos para financiamento de clínicas privadas de internação.

Entre as muitas problemáticas que cercam nosso trabalho, existe uma que diz respeito a este encontro e que precisa ser enfrentada: a captura da experiência estética dentro de uma lógica de diagnóstico clínico. Em um campo de atuação não emancipado, onde as práticas artísticas ocupam um lugar auxiliar na atuação dos serviços de saúde, a experiência estética se apresenta como uma forma refinida de recolher indícios patológicos, reduzindo a arte ao paradigma da ciência.A produção artística nunca é um mero reflexo de sintomas. Em um contexto deste tipo, a arte reforça ideologicamente os alicerceres da psiquiatria, servindo como um dos instrumentos para normatização dos corpos e eliminação dos impróprios, dos modos de existência que não cabem dentro do corpo social hegemonico.

Mario Pedrosa, importante crítico de arte e figura histórica fundamental na construção desse encontro entre arte e saúde, afirmava que a experiência estética é um “exercício experimental da liberdade”. Talvez tenhamos aí um primeiro norte para pensarmos essa interlocução. É preciso que se afirme a autonomia das experiências estéticas para que estas mantenham seu caráter emancipado, não se institucionalizem e percam seu caráter disruptivo, questionador e inventivo.

Quando falamos dos horizontes da reabilitação psicossocial falamos da inserção no mundo da coletividade, da invenção do cotidiano da cidade. Transformar a cultura da loucura, das drogas, dos excluídos, significa atacar os regimes de verdade hegemônicos que pautam socialmente esses temas. Isso é tarefa nossa. Esse é o grande trunfo das investidas estéticas dentro do trabalho de composição multidisciplinar nos serviços de saúde – a construção de um tecido cultural intenso, feito a partir do empoderamento da existência singular dos usuários que a produzem; a cultura feita em ato. Cultura antimanicomial.
As modalidades de resistência vital proliferam de maneiras mais inusitadas. E isso precisa ser afirmado. Nosso é um tempo do abandono dos espaços públicos de convívio, do empobrecimentos afetivo das cidades. Um projeto perverso anima a produção contemporânea do espaço, que torna os lugares públicos lugares de passagem, obstáculos a serem transpostos entre uma ilha de consumo e outra.

Tudo isso para pensarmos que, se trabalhamos em nossos serviços de atenção psicossocial tentando construir um cotidiano dos usuários com a cidade, precisamos estabelecer uma produção de cidade, inventar espaços no cotidiano da metrópole. É um processo social complexo este da desinstitucionalização; o território, mais do que nunca, é estratégia fundamental nessa construção, é nele que se dá a experiencia do sujeito em relação com o tecido social.

Neste trabalho de produção de espaço, a cultura é um importante recurso pois afirma, em forma de ação realizada no território, a expressão da diversidade. Podemos pensar que a produção artística na geográfia da cidade não marca um retorno de modos de vida não-hegemonicos ao espaço público, mas antes, transformam a cidade e seus dispositivos em ferramentas de investigação para esses modos de existência se afirmarem enquanto acontecimento,uma ação potente para que se produzam territórios de emancipação para todos os envolvidos, cuidadores, usuários, trabalhadores, artistas.

Podemos abordar a experiência estética como um recurso para borrarmos as fronteiras dos especialismos e possibilitarmos a atuação no território e a construção de uma cultura não-hegemonica de existência. Afirmar que esse modos de vida devem ser considerados como uma forma de saber com a qual toda a sociedade tem muito a aprender, fora de uma lógica dicotomica de ‘dentro da norma/fora da norma’.

Logo, dentro dos muitos modos de interlocução entre saúde e arte, fica patente a necessidade de bolarmos estratégias que blindem nosso trabalho cotidiano das muitas formas de captura operadas pelos mecanismos de poder, através da lógica normativa do capital, capilarizado de maneira profunda em todas as instâncias das nossas vidas. Não podemos cair no engodo de produzir obras estéticas no interior dos nossos serviços visando apenas um produto, um objeto artístico capaz de agregar valor economico dentro da lógica da grande indústria da arte. Não bastaum investimento de desejo dos trabalhadores para que os usuários do serviço se tornem sujeitos economicante produtivos através de seus produtos artísticos.Nunca devemos valorizar mais o produto do que o processo. É nele, no processo, nas muitas formas de produzir arte a partir de agenciamentos singulares, que se compõe as possibilidades de revoluções micropolíticas no coração dos equipamentos de saúde.Construír territórios a partir das produções estéticas desejantes que cotidianamente realizamos em nossos equipamentos.

Nosso trabalho é eminentemente político. Estamos constituindo o que é a saúde pública do Brasil, um compromisso sério. Somos agenciadores de modos de existência que estão em um estado de insuportabilidade na vida social; somente mudanças operadas nesse campo produzirão efeitos contundentes no cotidiano dos usuários. A reconquista do cotidiano. O mundo humano depende da invenção que se dá no cotidiano da experiência.[1] Essa é a ideia de clínica ampliada como a entendemos, um lugar de produção de vida a partir do desejo e da singularidade, um lugar de agenciamentos coletivos e afirmação de estilísticas de existência. A produção de saúde compreendida em seu amplo sentido psicossocial, seu sentido político.

Essa disposição militante precisa ser destacada. Nos organizamos enquanto trabalhadores de base, usamos nossas ferramentas e articulamos o encontro de hoje. Nos juntamos porque sabemos que juntos podemos construir mais. E que estamos articulados com princípios em comum, e que isso nos torna mais fortes, sobretudo politicamente. Estamos em um momento de levante. Nossa Rede dos Fazedores de Arte participa dessa ampla construção, feita na base do militantismo. Não à toa as ruas recentemente foram tomadas por todo o Brasil. Existe a construção de uma cultura de militância em curso já há muitos anos – a Luta Antimanicomial foi uma de suas grandes alfabetizadoras. Os serviços que atuamos são frutos dessa cultura.

Temos de nos articular, assumir nossa responsabilidade dentro desse processo, nos colocarmos como agentes de transformação dos nossos serviços. Operar a política de produção de saúde e subjetividade que julgamos consequente, articuladas com nossas práticas artísticas. Tudo junto e misturado. Uma máquina desejante ética-estética-politica, produzir cidade. Somos loucos, e não somos poucos.

Antes de mais nada, tudo.
Bom encontro a todos!


Rafael Presto
Oficineiro do CAPS Infatil Sé e
Arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial


            


[1]RAUTER, Cristina. Oficinas para Quê? Uma Proposta Ético-Estético-Político para oficinas terapêuticas in Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro; Editora Fiocruz, 2000.

Nota: texto de abertura do 1° Encontro Arte e Saúde da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, realizado em novembro de 2013 no Circo-teatro "Paratodos" instalado no Memorial da America Latina.