Matéria sobre o II Balaio das Artes [aqui]
Por Terezinha Vicente
quarta-feira, 21 de maio de 2014
terça-feira, 20 de maio de 2014
O II BALAIO DAS ARTES ou
Sobre construir uma
Clínica Ampliada da Arte [1]
O primeiro encontro da Rede dos Fazedores de Arte aconteceu em outubro de 2012, entusiasmado por artistas-oficineiros da atenção psicossocial. A princípio o que movia era a inquietação sobre este novo lugar que ocupavam. Na cidade de São Paulo, já são contratados artistas para integrar as equipes de saúde mental, no sentido de maior colaboração nas produções estéticas dos equipamentos.
A Rede é um encontro potente de pessoas que desbravam tempo e
espaço para esta iniciativa. E todos nós, cada um de nós que vai entrando
compõe com essa força intensiva, com essa vontade de outros mundos. Movimento autônomo
de trabalhadores que tem como intento pensar e agir a articulação entre arte e
saúde, fazendo desse movimento, um movimento social. Não inventamos a roda, mas
sabemos bem dos aprisionamentos cotidianos.
Hoje participam da Rede tanto artistas-oficineiros como
profissionais de outras especialidades. Espaço aberto de encontro para todos os
trabalhadores em saúde que se interessem em movimentar-sacudir conceitos e
práticas estéticas como modo de produção de saúdes e subjetividades, como
reinvenção de territórios e ocupação dos espaços da cidade.
Sabemos que, historicamente, a interlocução entre cuidados em
saúde e produção estética já tem caminho construído. Porém, vivemos uma
conjuntura macropolítica que pede um constante rearranjo de olhares e posturas
micropolíticas. Nos interessa desde como somos nomeados até a qualidade
intensiva das relações. Técnico? Artista? Auxiliar Técnico? Oficineiro?
Especialistas de quê?
E como se tem experienciado a tal integralidade, equidade, a tal
humanização? Acreditamos? Neste sentido, o II BALAIO DAS
ARTES -Mostra de Artes da Rede de Atenção Psicossocial é um gesto de esforço coletivo que
propõe maior visibilidade às produções e processos estéticos dos serviços de
atenção psicossocial. O II BALAIO pretende-se uma força ativa para fazer-inventar
o que desconhecemos: novas linguagens, novos caminhos e caminhares, novos
discursos, novo corpo... deslocar fronteiras de percepção e afecção. Desejo e
necessidade de criar novos arranjos cotidianos que vitalizem conceitos
preconizados pelas novas políticas em saúde. Afinal, uma ideia de
política só se transforma efetivamente em política pública quando ganha corpo
social.
A força está na postura
ética, estética e política que aprendemos a imbuir em todas nossas ações,
ideologias e micropolíticas. A tecnologia de relação com a Vida. A vida que pulsa
nos corpos e linguagens e nosso compromisso, enquanto trabalhadores e cidadãos,
de inventar e espremer os sucos impossíveis de nossas práticas de encontros. “Sejamos
realistas, queiramos o impossível” [2].
E quando falamos em arte,
pensamos na experimentação estética enquanto exercício de liberdade, exercício
das nossas máximas potências de agir. Experimentação estética que são as
conexões e produções criadas em diversas linguagens artísticas e que é também a
qualidade intensiva das forças produzidas nos encontros clínicos. Uma
clínica-encontro que se faz a partir das relações e não diagnósticos.
Encontros que se fazem
como obra de arte, pois que o artístico não está no produto das coisas, mas
sim, nos processos de tornar visíveis e dizíveis os desejos, quando começamos
pelo meio, entre pulsações, em experiência.
Nossos gestos e esforços
são a expressão de um militantismo que acredita na mudança de paradigma. Nos
distanciamos do paradigma da ciência para potencializar um movimento de luta
antimanicomial que se afirma pelo paradigma da arte. Uma luta contra todos os
aprisionamentos engendrados como verdades e que excluem deficientes, loucos,
drogaditos, velhos e crianças a favor de uma naturalização capitalista de
assujeitamentos.
Diz o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht:
Desconfiai do mais trivial,
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.
(Nada É Impossível De Mudar)
Tudo isso para dizer que, por uma Clínica Ampliada da Arte, precisamos nos posicionar. O movimento coletivo pode ser uma de nossas grandes ferramentas de resistência aos valores instituídos, convocando mudanças nos regimes de sensibilidades.
Que
nossos braços e pernas - materiais e imateriais - levantem cartazes e impunham
suas armas! Fazer macro e micropolítica sem misérias e com alegria. Somos
loucos, e não somos poucos.
“Se não
nos deixais sonhar, não os deixaremos dormir” [3].
Priscila Tamis Psicóloga e Arteira
[1] SANTOS, Daniela Patrícia; TAMIS, Priscila. Vídeo-ensaio em ecologia
urbana: políticas narrativas e problematizações no fluxo corpo-cidade-saúde.
Vídeo e texto apresentados no III Encontro Corpocidade, Cidade e Cultura:
experiências metodológicas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2012.
[2] Frase
que se via nos muros da França em Maio de 1968.
[3] Frase que percorreu as
últimas manifestações sociais da Cataluña, na Espanha. GALEANO, E. El derecho al delírio. https://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8
segunda-feira, 5 de maio de 2014
quarta-feira, 23 de abril de 2014
Carta aberta
São Paulo, 22 de abril de 2014.
Carta aberta
Considerando que o CAPS é fruto da reforma psiquiátrica, conforme lei 10216/2001, e que por isso deve conceber o sujeito em seu meio, sem isolar sua psicopatologia do contexto em que ele se encontra;
* Considerando os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), que entende o CAPS como o núcleo de uma nova clínica, produtora de autonomia, responsabilização e protagonismo;
* Considerando os princípios do SUAS (Sistema Único da Assistência Social), que incentiva o controle e monitoramento de seus equipamentos praticado pelos usuários dos serviços;
Considerando os preceitos previstos pela RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) de articulação de rede intra e intersetorial e também a definição de protagonismo enquanto "atividades que fomentem a participação de usuários e familiares nos processos de gestão dos serviços e da rede, como assembleias de serviço, participação em conselhos, conferências e congressos, a apropriação e a defesa de direitos, e a criação de formas associativas de organização";
Considerando os objetivos das Irmãs Hospitaleiras, que preconizam a oferta de saúde integral, com um caráter eminentemente humanizador, qualidade relacional e respeito pelos direitos da pessoa;
* Considerando os princípios da Redução de Danos, que relembra que o cuidado do usuário de drogas não considera apenas os danos que as substâncias causam a ele, mas também os danos causados pelo contexto sociocultural e político no qual ele se insere;
Considerando que a população em situação de rua compõe um grupo de excluídos de direitos sociais e que tal exclusão favorece o uso problemático de drogas;
Nós, trabalhadores do CAPS AD III Complexo Prates, entendemos ser de nossa competência o desenvolvimento de ações de empoderamento dos usuários. Trata-se do cumprimento de todos os princípios citados acima e do exercício de um papel que nos foi dado. Se o fazemos, não é por escolha pessoal ou institucional, mas atuação ética prevista por lei no desempenho profissional da equipe técnica de um CAPS.
Quando nos posicionamos em relação ao não uso do jaleco - que nos distancia, desiguala e rotula; quando defendemos a nossa presença em conflitos de usuários com a GCM por acreditarmos que “quando a polícia entra, não precisamos sair"; quando incentivamos os usuários a ocupar espaços de luta pelos seus direitos; em todos esses casos, estamos reafirmando que esse fazer não é apenas dos trabalhadores que o praticam, mas das instituições que representam nesse exercício, visto que nenhuma defende o fim dos direitos humanos ou a criminalização da dependência química.
Desta forma, reiteramos nosso repudio a qualquer inibição de ações relacionadas a esta prática, bem como nossa indignação frente a qualquer tipo de punição dispensada aos
profissionais que as executam. Dentre tantas outras situações de represália, temos o exemplo recente do afastamento imposto da gerente deste serviço após apresentar postura condizente com os pressupostos elencados e com a opinião da equipe.
Em nome do sofrimento causado pela não garantia do direito a voz, tanto de usuários como de trabalhadores, solicitamos apoio e incentivo para que as atividades aqui mencionadas sejam concretizadas e sustentadas pelos serviços que, idealmente, as propõem.
Assinam esta carta, de forma unânime, os trabalhadores do CAPS AD III do Complexo Prates.
quinta-feira, 27 de março de 2014
res-posta
Um dia pensei sobre quem seria o inimigo do
corpo mediante a tantos atravessamentos que submetem as subjetividades,
as enquadram e rotulam.
Tais atravessamentos são os que operam a ordem, a normalidade e demais conjunturas que regram, por vezes de maneira humilhante e veladamente gritante, os viveres. A pergunta não carece que se responda, antes, que se perceba, e ao fazê-lo, deixar que a percepção transborde certos contornos que, ao invés de formar - dar forma, tornam-se prisões - conformam.
Posso tentar seguir pensando no sentido de uma (in)certa integralidade e de como as possibilidades "Trans" evocam os "comos" disso de existir. E o "trans", a transdisciplinaridade - ou - 'transa simbiótica' das práticas,saberes e conceitos que con-vocam a possibilidade de um ambiente.
Tais atravessamentos são os que operam a ordem, a normalidade e demais conjunturas que regram, por vezes de maneira humilhante e veladamente gritante, os viveres. A pergunta não carece que se responda, antes, que se perceba, e ao fazê-lo, deixar que a percepção transborde certos contornos que, ao invés de formar - dar forma, tornam-se prisões - conformam.
Posso tentar seguir pensando no sentido de uma (in)certa integralidade e de como as possibilidades "Trans" evocam os "comos" disso de existir. E o "trans", a transdisciplinaridade - ou - 'transa simbiótica' das práticas,saberes e conceitos que con-vocam a possibilidade de um ambiente.
O ambiente ou con-texto significa as ações que se justificam na integração disso que é a construção do comum, ou quem sabe do in-comum, que exigirá um alongamento mental que promova rupturas, que "pire" (incendiariamente falando), os modos operativos que promovem as tais falas sem sujeito: "foi sempre assim", "isto não tem jeito" e assim por diante.
As tais falas sem sujeito, as falas que sujeitam, submetem e des-pontencializam são responsáveis pelo esvaziamento do ânimo, da anima e pelo entorpecimento que mantém o status-quo como algo sem passado e sem uma possibilidade de futuro inventável.
Vitor Pordeus e o contexto que significa as ações dos trabalhos coletivos desenvolvidos no hotel da loucura e na UPAC são, das muitas respostas, uma possível a minha questão inicial. Resposta que minimiza a impressão negativa de que muitos de nossos pensadores - ou - mestres da cultura popular jazem no esquecimento e por vezes parecem nunca ter existido.
Há um corpo, um corpus que resisti e espera pela sua primavera.
Há um corpo, um corpus que resisti e espera pela sua primavera.
Anderson Gomes
ArteiroOficineiroArteducador
no CAPS AD - VL. ARAPUÁ
sexta-feira, 7 de março de 2014
O que a festa nos ensina?
O que a festa nos ensina? A festa
é como uma batalha, uma fábula – todos os corpos des-ordenados para um fim, em
riste, moventes, flutuantes em torno de si – A festa almeja a si mesma. O que a
festa nos ensina? A festa engendra e tem engendrado em seu bojo todo o aspecto
pluridimensional que pode ser diluído – ou – definido(?) em conceitos; sejam eles
poéticos, políticos ou terapêuticos. Seu sentido social, sociável, socializante,
trans-atlante... A festa! O que a festa nos ensina? A festa convoca, convoca o
corpo, convoca a um pacto, a integração – a festa é um todo. Não se pode estar
na festa pela metade, a festa exige o inteiro – o que a festa pode nos ensinar?
O que podemos aprender com a festa? A festa, o povo da rua a rua do povo – o
que manifesta o corpo que festeja? Que existência inaugura? Algures, a festa é
a alvorada do corpo que se faz corpo no ponto de intersecção entre o horizontal
e o vertical, o corpo plana e molda o espaço em valores plásticos – a prática
do corpo revolvida em plástica que torna o cotidiano "extra" e acessa o
impossível. A festa afeta por que o corpo é porto e é mar por onde se navega, é
nau e navegante é flecha e alvo. Não se mensura as desmedidas e latências
destes acontecimentos, pois, enquanto “acontessência” o que “é” é por que “é”. Tal
consequência nos coloca não mais no plano de quem contempla a paisagem, mas de
quem já não se distingui de sua condição.
Anderson Gomes
ArteiroOficineiroArteducador
no CAPS AD - VL. ARAPUÁ
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
eu - preta, pobre e crackeira
eu
preta, pobre e crackeira
Hoje estava na rua Frederico
Abranches, zona central de SP, no Complexo Cracolândia. Caminhava sozinha em
direção ao metrô Pedro II. Peguei a passarela. No meio dela dou de cara com um
amontoado de pessoas que rodeavam outras três. Dois homens imobilizavam outro
que estava estendido no chão.
- O que aconteceu?
- O cara roubou a carteira dele!
O “cara” era um homem negro,
alto, vestido de um jeans. Naquele momento o “cara” era um preto, pobre,
crackeiro que tinha roubado uma carteira e tinha agora o rosto esfolado no
chão.
“Ele” segurava os braços do
“cara” e o pressionava com as pernas contra o chão, com a colaboração de um
outro justiceiro qualquer.
- Moço, você pegou sua carteira?
- Eu tô com a carteira!
- Então larga o “cara”!
Naquele momento o “cara” sentia
na pele toda revolta e miséria política-afetiva que o corpo multidão pode
portar.
Uma garota se aproximou com dedo
em riste na minha cara.
- Você é uma escrota!
Aí começaram os instantes dos
mais oprimidos que já vivi – porque naquele instante eu já era outra. A pele
escureceu, a grana da sobrevivência escapou e o crack me invadiu. Bem assim.
Nunca, em nenhuma situação, em nenhum estudo, movimento social ou poéticas
homônimas senti isso.
Ela sentia ódio. Me olhou no
olho, como se fosse a última coisa que faria na Terra. E repetia.
-Você é uma escrota!
Ela cada vez mais perto.
Ao mesmo tempo, um homem branco
limpinho, de uns cinquenta anos, aproximou-se mais e gritou:
-Você é cúmplice desse cara!
E outro qualquer – nisso meus
olhos já quase não enxergavam – aproximou-se também.
Ele tá contendo o cara pra chamar
a polícia! – esclareceu mais outro justiceiro.
Consegui que a roda se virasse
pra mim. Quase todos ali me rodeavam. E aí o vômito chegou à garganta, engoli
uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante
consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de
ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já
estava ali, em cada um deles.
Eu era a preta, pobre, crackeira.
Sem cristianismos. Senti o que jamais senti na pele. Nenhuma bomba de gás
lacrimogêneo me fez sentir assim. Bem assim. Eles estavam prontos pra rasgar
minha cara no concreto, como faziam com o preto, pobre, crackeiro que bateu
carteira. Eu roubava a dignidade que eles sentiam em reprimir. Bem assim.
A força de multidão que os impulsionava, a força da alienação do efeito massa
que pode acontecer quando um monte de gente se junta seja para o que for. Pelo menos seis pessoas estavam a menos de um
palmo de mim.E eu, preta-pobre-crackeira-escrota senti a violência da polícia.
Eu não apanhei. Porque me calei,
deixei o “cara” já de pé, mas ainda encurralado, virei as costas e segui. Aos
soluços e engasgada com o vômito que não saiu. Mais ou menos cinquenta
minutos - na intensidade felina dos mais
ou menos cinquenta anos daquele senhor - de choro com soluço no metrô, na rua,
no ônibus. Do afeto agonizante e humilhado não privei nenhum passante.
Afinal, a violência é de quem?
O drama do protagonista que é
sempre o primeiro a agonizar a vida que se vive.
Hoje eu não subverti nada, não
construí nada, pouco me manifestei. Fui gente covarde com medo de apanhar. Fui
gente que quer viver e não se orgulha em sangrar. Fui gente
cansada, rasgada no peito.
Nesse dia que fui branca e fui
preta, que fui classe média-intelectual e fui crackeira, eu só queria, como
quero todos os dias, que toda a gente pudesse ser gente nessa cidade.
Caros repressores,
Caros ressentidos,
Caras pessoas que reproduzem a
lógica de massacre,
Diante de toda bomba e de todo
dedo em riste,
Diante de todo medo que senti,
Posso dizer agora, neste mesmo
dia de hoje, que vossa força reativa encarnou neste corpo que vos fala a máxima
potência da indignação. Senti o que jamais vivi na minha vã filosofia
militante. Senti no corpo o ódio da farda que vocês vestiram. Vocês ameaçavam
com humilhação e estupidez inúteis a vida daquele homem. Vocês ameaçaram a
minha vida.
Luto com tudo o que posso contra
vossas fardas.
Luto contra as minhas fardas.
E se hoje pelo meio do dia eu não
falei
Pela noite escrevo e publico.
Quando a gente se expõe ao
acontecimento ele acontece.
(quais modos de existência
estamos produzindo nessa cidade?)
Toda força aos que lutam!
Priscila Tamis
Por Uma Clínica Ampliada da Arte
O encontro de
hoje é resultado de uma articulação que vem acontecendo há pouco mais de um
ano, uma articulação de trabalhadores da atenção psicossocial que constroem
seus cotidianos a partir de dispositivos artísticos, uma Rede de Fazedores de
Arte na Atenção Psicossocial, um espaço de troca e ação coletiva dos muitos
profissionais que atuam na interlocução entre produção de saúde e produção
estética.
É
histórica a transdiscilplinaridade entre arte e saúde. No Brasil, arte, loucura
e saúde mental constroem linhas de atravessamentos desde o século XIX, pautadas
em experiências contra-hegemonicas de embate a psiquiatria tradicional e sua
lógica. Hoje, a política nacional preve como parte integrante das equipes dos
CAPS os oficineiros, que nada mais são do que a afirmação dessa interlocução.É
importante frisar este aspecto: os oficineiros não inauguram nada, são uma
consequencia desse processo de construções estéticas realizado, antes de tudo,
por diversos profissionais – psicologos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais,
educadores físicos, assistentes sociais.
Assim, as
práticas artísticas colaboram com a transformação do cotidiano dos serviços de saúde,
figurandocomo um potente dispositivo para as construções e descontruções
necessárias do cuidado em liberdade, uma importante ferramenta para compormos
uma produção de cuidado longe de principios normativos, para todos os
envolvidos em sua construção,usuários, cuidadores, gestores, trabalhadores.
São
muitas as pretensões da Reforma Psiquiatríca, não basta fecharmos os manicomios
e criarmos uma Rede de Atenção Psicossocial – isso é só o começo. Faz-se
necessário avançar, e muito, na forma como se constitui o tecido sociocultural
dos modos de vida não-hegemonicos, ou seja, a forma como a sociedade compreende
as muitas existências fora da norma produtiva capitalista – o louco, o drogado,
o deficiente, o velho, a criança. E é justamente neste campo que as iniciativas
artísticas dentro dos modos de produção de cuidado podem atuar; a arte vem
sendo utilizada para desmistificar e transformar a concepção que a sociedade
criou desses modos de vida não hegemonicos desde os primórdios da psiquiatria.
O que está em
questãonão é mudar o modelo de assistencia, mas sim recolocar socialmente alguns
temas, redefinir a construção cultural da loucura, das drogas, da miséria,
combatendo toda e qualquer ação que responda a uma lógica manicomial. A
produção artística, dentro desta perspectiva, é ponto fundamental, pois atua
diretamente no campo simbólico, possibilitando outras construções culturais no
tecido social.
No entanto,
vivemos tempos sombrios. Forças reacionárias se articulam e, dia-a-dia, ampliam
as práticas manicomiais dentro da produção de cuidado psicossocial.
Acompanhamos cotidianamente a transformação dos CAPS em centros ambulatoriais,
a internação compulsório de dependentes químicos, um aumento das práticas
medicalocentricas nos serviços de saúde, programas públicos para financiamento
de clínicas privadas de internação.
Entre as
muitas problemáticas que cercam nosso trabalho, existe uma que diz respeito a
este encontro e que precisa ser enfrentada: a captura da experiência estética
dentro de uma lógica de diagnóstico clínico. Em um campo de atuação não
emancipado, onde as práticas artísticas ocupam um lugar auxiliar na atuação dos
serviços de saúde, a experiência estética se apresenta como uma forma refinida
de recolher indícios patológicos, reduzindo a arte ao paradigma da ciência.A
produção artística nunca é um mero reflexo de sintomas. Em um contexto deste
tipo, a arte reforça ideologicamente os alicerceres da psiquiatria, servindo
como um dos instrumentos para normatização dos corpos e eliminação dos
impróprios, dos modos de existência que não cabem dentro do corpo social
hegemonico.
Mario Pedrosa,
importante crítico de arte e figura histórica fundamental na construção desse
encontro entre arte e saúde, afirmava que a experiência estética é um
“exercício experimental da liberdade”. Talvez tenhamos aí um primeiro norte
para pensarmos essa interlocução. É preciso que se afirme a autonomia das
experiências estéticas para que estas mantenham seu caráter emancipado, não se
institucionalizem e percam seu caráter disruptivo, questionador e inventivo.
Quando falamos
dos horizontes da reabilitação psicossocial falamos da inserção no mundo da
coletividade, da invenção do cotidiano da cidade. Transformar a cultura da
loucura, das drogas, dos excluídos, significa atacar os regimes de verdade
hegemônicos que pautam socialmente esses temas. Isso é tarefa nossa. Esse é o
grande trunfo das investidas estéticas dentro do trabalho de composição
multidisciplinar nos serviços de saúde – a construção de um tecido cultural
intenso, feito a partir do empoderamento da existência singular dos usuários
que a produzem; a cultura feita em ato. Cultura antimanicomial.
As modalidades
de resistência vital proliferam de maneiras mais inusitadas. E isso precisa ser
afirmado. Nosso é um tempo do abandono dos espaços públicos de convívio, do
empobrecimentos afetivo das cidades. Um projeto perverso anima a produção
contemporânea do espaço, que torna os lugares públicos lugares de passagem,
obstáculos a serem transpostos entre uma ilha de consumo e outra.
Tudo isso para
pensarmos que, se trabalhamos em nossos serviços de atenção psicossocial
tentando construir um cotidiano dos usuários com a cidade, precisamos
estabelecer uma produção de cidade, inventar espaços no cotidiano da metrópole.
É um processo social complexo este da desinstitucionalização; o território,
mais do que nunca, é estratégia fundamental nessa construção, é nele que se dá
a experiencia do sujeito em relação com o tecido social.
Neste trabalho
de produção de espaço, a cultura é um importante recurso pois afirma, em forma
de ação realizada no território, a expressão da diversidade. Podemos pensar que
a produção artística na geográfia da cidade não marca um retorno de modos de
vida não-hegemonicos ao espaço público, mas antes, transformam a cidade e seus
dispositivos em ferramentas de investigação para esses modos de existência se
afirmarem enquanto acontecimento,uma ação potente para que se produzam
territórios de emancipação para todos os envolvidos, cuidadores, usuários,
trabalhadores, artistas.
Podemos
abordar a experiência estética como um recurso para borrarmos as fronteiras dos
especialismos e possibilitarmos a atuação no território e a construção de uma
cultura não-hegemonica de existência. Afirmar que esse modos de vida devem ser
considerados como uma forma de saber com a qual toda a sociedade tem muito a aprender,
fora de uma lógica dicotomica de ‘dentro da norma/fora da norma’.
Logo, dentro
dos muitos modos de interlocução entre saúde e arte, fica patente a necessidade
de bolarmos estratégias que blindem nosso trabalho cotidiano das muitas formas
de captura operadas pelos mecanismos de poder, através da lógica normativa do
capital, capilarizado de maneira profunda em todas as instâncias das nossas
vidas. Não podemos cair no engodo de produzir obras estéticas no interior dos
nossos serviços visando apenas um produto, um objeto artístico capaz de agregar
valor economico dentro da lógica da grande indústria da arte. Não bastaum
investimento de desejo dos trabalhadores para que os usuários do serviço se
tornem sujeitos economicante produtivos através de seus produtos
artísticos.Nunca devemos valorizar mais o produto do que o processo. É nele, no
processo, nas muitas formas de produzir arte a partir de agenciamentos
singulares, que se compõe as possibilidades de revoluções micropolíticas no
coração dos equipamentos de saúde.Construír territórios a partir das produções
estéticas desejantes que cotidianamente realizamos em nossos equipamentos.
Nosso trabalho é eminentemente político. Estamos
constituindo o que é a saúde pública do Brasil, um compromisso sério. Somos
agenciadores de modos de existência que estão em um estado de insuportabilidade
na vida social; somente mudanças operadas nesse campo produzirão efeitos
contundentes no cotidiano dos usuários. A reconquista do cotidiano. O mundo
humano depende da invenção que se dá no cotidiano da experiência.[1] Essa é a ideia
de clínica ampliada como a entendemos, um lugar de produção de vida a partir do
desejo e da singularidade, um lugar de agenciamentos coletivos e afirmação de
estilísticas de existência. A produção de saúde compreendida em seu amplo
sentido psicossocial, seu sentido político.
Essa disposição militante precisa ser destacada.
Nos organizamos enquanto trabalhadores de base, usamos nossas ferramentas e
articulamos o encontro de hoje. Nos juntamos porque sabemos que juntos podemos
construir mais. E que estamos articulados com princípios em comum, e que isso
nos torna mais fortes, sobretudo politicamente. Estamos em um momento de
levante. Nossa Rede dos Fazedores de Arte participa dessa ampla construção, feita
na base do militantismo. Não à toa as ruas recentemente foram tomadas por todo
o Brasil. Existe a construção de uma cultura de militância em curso já há
muitos anos – a Luta Antimanicomial foi uma de suas grandes alfabetizadoras. Os
serviços que atuamos são frutos dessa cultura.
Temos de nos articular, assumir nossa
responsabilidade dentro desse processo, nos colocarmos como agentes de
transformação dos nossos serviços. Operar a política de produção de saúde e
subjetividade que julgamos consequente, articuladas com nossas práticas
artísticas. Tudo junto e misturado. Uma máquina desejante
ética-estética-politica, produzir cidade. Somos loucos, e não somos poucos.
Antes de mais nada, tudo.
Bom encontro a todos!
Rafael Presto
Oficineiro do CAPS Infatil Sé e
Arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na
Atenção Psicossocial
[1]RAUTER,
Cristina. Oficinas para Quê? Uma Proposta Ético-Estético-Político para oficinas
terapêuticas in Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de
Janeiro; Editora Fiocruz, 2000.
Nota: texto de abertura do 1° Encontro Arte e Saúde da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, realizado em novembro de 2013 no Circo-teatro "Paratodos" instalado no Memorial da America Latina.
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