eu
preta, pobre e crackeira
Hoje estava na rua Frederico
Abranches, zona central de SP, no Complexo Cracolândia. Caminhava sozinha em
direção ao metrô Pedro II. Peguei a passarela. No meio dela dou de cara com um
amontoado de pessoas que rodeavam outras três. Dois homens imobilizavam outro
que estava estendido no chão.
- O que aconteceu?
- O cara roubou a carteira dele!
O “cara” era um homem negro,
alto, vestido de um jeans. Naquele momento o “cara” era um preto, pobre,
crackeiro que tinha roubado uma carteira e tinha agora o rosto esfolado no
chão.
“Ele” segurava os braços do
“cara” e o pressionava com as pernas contra o chão, com a colaboração de um
outro justiceiro qualquer.
- Moço, você pegou sua carteira?
- Eu tô com a carteira!
- Então larga o “cara”!
Naquele momento o “cara” sentia
na pele toda revolta e miséria política-afetiva que o corpo multidão pode
portar.
Uma garota se aproximou com dedo
em riste na minha cara.
- Você é uma escrota!
Aí começaram os instantes dos
mais oprimidos que já vivi – porque naquele instante eu já era outra. A pele
escureceu, a grana da sobrevivência escapou e o crack me invadiu. Bem assim.
Nunca, em nenhuma situação, em nenhum estudo, movimento social ou poéticas
homônimas senti isso.
Ela sentia ódio. Me olhou no
olho, como se fosse a última coisa que faria na Terra. E repetia.
-Você é uma escrota!
Ela cada vez mais perto.
Ao mesmo tempo, um homem branco
limpinho, de uns cinquenta anos, aproximou-se mais e gritou:
-Você é cúmplice desse cara!
E outro qualquer – nisso meus
olhos já quase não enxergavam – aproximou-se também.
Ele tá contendo o cara pra chamar
a polícia! – esclareceu mais outro justiceiro.
Consegui que a roda se virasse
pra mim. Quase todos ali me rodeavam. E aí o vômito chegou à garganta, engoli
uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante
consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de
ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já
estava ali, em cada um deles.
Eu era a preta, pobre, crackeira.
Sem cristianismos. Senti o que jamais senti na pele. Nenhuma bomba de gás
lacrimogêneo me fez sentir assim. Bem assim. Eles estavam prontos pra rasgar
minha cara no concreto, como faziam com o preto, pobre, crackeiro que bateu
carteira. Eu roubava a dignidade que eles sentiam em reprimir. Bem assim.
A força de multidão que os impulsionava, a força da alienação do efeito massa
que pode acontecer quando um monte de gente se junta seja para o que for. Pelo menos seis pessoas estavam a menos de um
palmo de mim.E eu, preta-pobre-crackeira-escrota senti a violência da polícia.
Eu não apanhei. Porque me calei,
deixei o “cara” já de pé, mas ainda encurralado, virei as costas e segui. Aos
soluços e engasgada com o vômito que não saiu. Mais ou menos cinquenta
minutos - na intensidade felina dos mais
ou menos cinquenta anos daquele senhor - de choro com soluço no metrô, na rua,
no ônibus. Do afeto agonizante e humilhado não privei nenhum passante.
Afinal, a violência é de quem?
O drama do protagonista que é
sempre o primeiro a agonizar a vida que se vive.
Hoje eu não subverti nada, não
construí nada, pouco me manifestei. Fui gente covarde com medo de apanhar. Fui
gente que quer viver e não se orgulha em sangrar. Fui gente
cansada, rasgada no peito.
Nesse dia que fui branca e fui
preta, que fui classe média-intelectual e fui crackeira, eu só queria, como
quero todos os dias, que toda a gente pudesse ser gente nessa cidade.
Caros repressores,
Caros ressentidos,
Caras pessoas que reproduzem a
lógica de massacre,
Diante de toda bomba e de todo
dedo em riste,
Diante de todo medo que senti,
Posso dizer agora, neste mesmo
dia de hoje, que vossa força reativa encarnou neste corpo que vos fala a máxima
potência da indignação. Senti o que jamais vivi na minha vã filosofia
militante. Senti no corpo o ódio da farda que vocês vestiram. Vocês ameaçavam
com humilhação e estupidez inúteis a vida daquele homem. Vocês ameaçaram a
minha vida.
Luto com tudo o que posso contra
vossas fardas.
Luto contra as minhas fardas.
E se hoje pelo meio do dia eu não
falei
Pela noite escrevo e publico.
Quando a gente se expõe ao
acontecimento ele acontece.
(quais modos de existência
estamos produzindo nessa cidade?)
Toda força aos que lutam!
Priscila Tamis
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