sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Por Uma Clínica Ampliada da Arte



O encontro de hoje é resultado de uma articulação que vem acontecendo há pouco mais de um ano, uma articulação de trabalhadores da atenção psicossocial que constroem seus cotidianos a partir de dispositivos artísticos, uma Rede de Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, um espaço de troca e ação coletiva dos muitos profissionais que atuam na interlocução entre produção de saúde e produção estética.
                
         É histórica a transdiscilplinaridade entre arte e saúde. No Brasil, arte, loucura e saúde mental constroem linhas de atravessamentos desde o século XIX, pautadas em experiências contra-hegemonicas de embate a psiquiatria tradicional e sua lógica. Hoje, a política nacional preve como parte integrante das equipes dos CAPS os oficineiros, que nada mais são do que a afirmação dessa interlocução.É importante frisar este aspecto: os oficineiros não inauguram nada, são uma consequencia desse processo de construções estéticas realizado, antes de tudo, por diversos profissionais – psicologos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, assistentes sociais.

Assim, as práticas artísticas colaboram com a transformação do cotidiano dos serviços de saúde, figurandocomo um potente dispositivo para as construções e descontruções necessárias do cuidado em liberdade, uma importante ferramenta para compormos uma produção de cuidado longe de principios normativos, para todos os envolvidos em sua construção,usuários, cuidadores, gestores, trabalhadores.
                
        São muitas as pretensões da Reforma Psiquiatríca, não basta fecharmos os manicomios e criarmos uma Rede de Atenção Psicossocial – isso é só o começo. Faz-se necessário avançar, e muito, na forma como se constitui o tecido sociocultural dos modos de vida não-hegemonicos, ou seja, a forma como a sociedade compreende as muitas existências fora da norma produtiva capitalista – o louco, o drogado, o deficiente, o velho, a criança. E é justamente neste campo que as iniciativas artísticas dentro dos modos de produção de cuidado podem atuar; a arte vem sendo utilizada para desmistificar e transformar a concepção que a sociedade criou desses modos de vida não hegemonicos desde os primórdios da psiquiatria.

O que está em questãonão é mudar o modelo de assistencia, mas sim recolocar socialmente alguns temas, redefinir a construção cultural da loucura, das drogas, da miséria, combatendo toda e qualquer ação que responda a uma lógica manicomial. A produção artística, dentro desta perspectiva, é ponto fundamental, pois atua diretamente no campo simbólico, possibilitando outras construções culturais no tecido social.
No entanto, vivemos tempos sombrios. Forças reacionárias se articulam e, dia-a-dia, ampliam as práticas manicomiais dentro da produção de cuidado psicossocial. Acompanhamos cotidianamente a transformação dos CAPS em centros ambulatoriais, a internação compulsório de dependentes químicos, um aumento das práticas medicalocentricas nos serviços de saúde, programas públicos para financiamento de clínicas privadas de internação.

Entre as muitas problemáticas que cercam nosso trabalho, existe uma que diz respeito a este encontro e que precisa ser enfrentada: a captura da experiência estética dentro de uma lógica de diagnóstico clínico. Em um campo de atuação não emancipado, onde as práticas artísticas ocupam um lugar auxiliar na atuação dos serviços de saúde, a experiência estética se apresenta como uma forma refinida de recolher indícios patológicos, reduzindo a arte ao paradigma da ciência.A produção artística nunca é um mero reflexo de sintomas. Em um contexto deste tipo, a arte reforça ideologicamente os alicerceres da psiquiatria, servindo como um dos instrumentos para normatização dos corpos e eliminação dos impróprios, dos modos de existência que não cabem dentro do corpo social hegemonico.

Mario Pedrosa, importante crítico de arte e figura histórica fundamental na construção desse encontro entre arte e saúde, afirmava que a experiência estética é um “exercício experimental da liberdade”. Talvez tenhamos aí um primeiro norte para pensarmos essa interlocução. É preciso que se afirme a autonomia das experiências estéticas para que estas mantenham seu caráter emancipado, não se institucionalizem e percam seu caráter disruptivo, questionador e inventivo.

Quando falamos dos horizontes da reabilitação psicossocial falamos da inserção no mundo da coletividade, da invenção do cotidiano da cidade. Transformar a cultura da loucura, das drogas, dos excluídos, significa atacar os regimes de verdade hegemônicos que pautam socialmente esses temas. Isso é tarefa nossa. Esse é o grande trunfo das investidas estéticas dentro do trabalho de composição multidisciplinar nos serviços de saúde – a construção de um tecido cultural intenso, feito a partir do empoderamento da existência singular dos usuários que a produzem; a cultura feita em ato. Cultura antimanicomial.
As modalidades de resistência vital proliferam de maneiras mais inusitadas. E isso precisa ser afirmado. Nosso é um tempo do abandono dos espaços públicos de convívio, do empobrecimentos afetivo das cidades. Um projeto perverso anima a produção contemporânea do espaço, que torna os lugares públicos lugares de passagem, obstáculos a serem transpostos entre uma ilha de consumo e outra.

Tudo isso para pensarmos que, se trabalhamos em nossos serviços de atenção psicossocial tentando construir um cotidiano dos usuários com a cidade, precisamos estabelecer uma produção de cidade, inventar espaços no cotidiano da metrópole. É um processo social complexo este da desinstitucionalização; o território, mais do que nunca, é estratégia fundamental nessa construção, é nele que se dá a experiencia do sujeito em relação com o tecido social.

Neste trabalho de produção de espaço, a cultura é um importante recurso pois afirma, em forma de ação realizada no território, a expressão da diversidade. Podemos pensar que a produção artística na geográfia da cidade não marca um retorno de modos de vida não-hegemonicos ao espaço público, mas antes, transformam a cidade e seus dispositivos em ferramentas de investigação para esses modos de existência se afirmarem enquanto acontecimento,uma ação potente para que se produzam territórios de emancipação para todos os envolvidos, cuidadores, usuários, trabalhadores, artistas.

Podemos abordar a experiência estética como um recurso para borrarmos as fronteiras dos especialismos e possibilitarmos a atuação no território e a construção de uma cultura não-hegemonica de existência. Afirmar que esse modos de vida devem ser considerados como uma forma de saber com a qual toda a sociedade tem muito a aprender, fora de uma lógica dicotomica de ‘dentro da norma/fora da norma’.

Logo, dentro dos muitos modos de interlocução entre saúde e arte, fica patente a necessidade de bolarmos estratégias que blindem nosso trabalho cotidiano das muitas formas de captura operadas pelos mecanismos de poder, através da lógica normativa do capital, capilarizado de maneira profunda em todas as instâncias das nossas vidas. Não podemos cair no engodo de produzir obras estéticas no interior dos nossos serviços visando apenas um produto, um objeto artístico capaz de agregar valor economico dentro da lógica da grande indústria da arte. Não bastaum investimento de desejo dos trabalhadores para que os usuários do serviço se tornem sujeitos economicante produtivos através de seus produtos artísticos.Nunca devemos valorizar mais o produto do que o processo. É nele, no processo, nas muitas formas de produzir arte a partir de agenciamentos singulares, que se compõe as possibilidades de revoluções micropolíticas no coração dos equipamentos de saúde.Construír territórios a partir das produções estéticas desejantes que cotidianamente realizamos em nossos equipamentos.

Nosso trabalho é eminentemente político. Estamos constituindo o que é a saúde pública do Brasil, um compromisso sério. Somos agenciadores de modos de existência que estão em um estado de insuportabilidade na vida social; somente mudanças operadas nesse campo produzirão efeitos contundentes no cotidiano dos usuários. A reconquista do cotidiano. O mundo humano depende da invenção que se dá no cotidiano da experiência.[1] Essa é a ideia de clínica ampliada como a entendemos, um lugar de produção de vida a partir do desejo e da singularidade, um lugar de agenciamentos coletivos e afirmação de estilísticas de existência. A produção de saúde compreendida em seu amplo sentido psicossocial, seu sentido político.

Essa disposição militante precisa ser destacada. Nos organizamos enquanto trabalhadores de base, usamos nossas ferramentas e articulamos o encontro de hoje. Nos juntamos porque sabemos que juntos podemos construir mais. E que estamos articulados com princípios em comum, e que isso nos torna mais fortes, sobretudo politicamente. Estamos em um momento de levante. Nossa Rede dos Fazedores de Arte participa dessa ampla construção, feita na base do militantismo. Não à toa as ruas recentemente foram tomadas por todo o Brasil. Existe a construção de uma cultura de militância em curso já há muitos anos – a Luta Antimanicomial foi uma de suas grandes alfabetizadoras. Os serviços que atuamos são frutos dessa cultura.

Temos de nos articular, assumir nossa responsabilidade dentro desse processo, nos colocarmos como agentes de transformação dos nossos serviços. Operar a política de produção de saúde e subjetividade que julgamos consequente, articuladas com nossas práticas artísticas. Tudo junto e misturado. Uma máquina desejante ética-estética-politica, produzir cidade. Somos loucos, e não somos poucos.

Antes de mais nada, tudo.
Bom encontro a todos!


Rafael Presto
Oficineiro do CAPS Infatil Sé e
Arteiro da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial


            


[1]RAUTER, Cristina. Oficinas para Quê? Uma Proposta Ético-Estético-Político para oficinas terapêuticas in Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro; Editora Fiocruz, 2000.

Nota: texto de abertura do 1° Encontro Arte e Saúde da Rede dos Fazedores de Arte na Atenção Psicossocial, realizado em novembro de 2013 no Circo-teatro "Paratodos" instalado no Memorial da America Latina. 

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